sexta-feira, 27 de maio de 2011

História de amor (últimos capítulos): Mais retórica e menos teatro

“História de amor (últimos capítulos)” é um espetáculo do grupo Teatro da Vertigem, uma das companhias mais interessantes do teatro brasileiro contemporâneo. Suas montagens, desde 1991, costumam causar um certo frisson na crítica especializada que elogia (quase) sempre seus trabalhos, ansiando por despertar com isso maiores e melhores públicos. “As montagens exibem um uso afinado dos códigos teatrais, manifestam uma profunda reflexão sobre o fazer teatral e são sinais de cuidado, zelo e dedicação ao processo artístico.” – é o que, de modo geral, corre de site em site, blog em blog, debate em debate por aí. A produção da peça, escrita em 1983, é uma leitura dramática do texto homônimo de Jean-Luc Largarce, escritor francês, nascido em 1956 e morto em 1995, em decorrência de doenças causadas pela AIDS, hoje, um dos autores mais montados na Europa. Integrante da programação do 6º Palco Giratório, evento produzido pelo Sesc Porto Alegre/RS, o espetáculo não decepciona quem espera ver uma produção inteligente. Mas enfastia quem espera ver teatro.
O Grupo Teatro da Vertigem produz o espetáculo de um jeito peculiar. As cadeiras dispostas em círculo no palco com luz geral acesa estão em volta de uma mesa. O público entra e, ao ocupar sua cadeira, ganha uma cópia do texto. Quando o espetáculo “começa”, quem assiste vai percebendo o espetáculo e como lidar com ele. Entende que tudo o que é dito pelos atores está no texto e acompanha as falas, lendo as frases sempre que quiser. Aí começam os problemas.
O texto tem 26 páginas. A encenação, então, funciona como uma ampulheta: é só esperar ela terminar. Página por página a assistência vai tendo acesso ao que acontecerá, calculando o tempo, prevendo as ações, eliminando a esperança por alguma surpresa. O discurso é sempre metalingüístico, isto é, o teatro fala do teatro.  Os personagens falam de si usando a terceira pessoa, a situação em que eles se encontram não é aberta.  As três figuras (dois homens e uma mulher) partilham uma história que não é de todo dividida com quem assiste de forma aberta. Ao público fica a tarefa de tentar adivinhar o que aconteceu ou o convite para criar.
Narrativamente, é interessante (ou inteligente) o fato de que há uma relação que fala de uma relação: o presente falando do passado, os personagens em busca do significado de si mesmas para aquele que escreveu a peça e, talvez, para si mesmo. A expressão manifesta cenicamente disso, no entanto, é fria. As frases não são articuladas de forma direta, nem quando ditas, nem quando escritas. O texto se perde, as imagens são quase inexistentes, tudo paira num lugar bastante confuso. Todos os signos mobilizados pelo diretor Antônio Araújo cheiram a teatro contemporâneo, mas são vazios porque não se consegue identifica-los enquanto código.
Há que se dizer, no entanto, que há alguns traços que não só são inteligentes, mas também belos. O uso do som, que redunda o texto verbal, ajuda a deixar mais ágil a história e as relações existentes entre os personagens. Algumas imagens isoladas também conferem ao espetáculo uma marca de contemporaneidade que seja realmente válida. Um exemplo: em determinado momento, há uma fala que versa sobre a relação entre o ato de escrever e o ato de morrer. Um refletor acende sobre a plateia vazia. Ao espectador, é dada a possibilidade de encontrar nas cadeiras relação com as teclas de uma máquina de escrever citada fisicamente pela presença de uma em cena e também verbalmente no texto dito e escrito. Bastante forte, a presença cênica da atriz Luciana Schwinden se destaca entre Roberto Áudio, o primeiro homem, e Sérgio Siviero, o segundo homem. Ela, por méritos do dramaturgo, com mais possibilidades que eles em mostrar talento e técnica, colabora com a cena, agregando força, curvas expressivas (choro, riso, sussurros, clareza) e belas imagens. Com isso, não há que se pensar que Áudio e Siviero não estão bem em cena. Ao contrário, fica-se ansioso por mais teatro menos retórica, mais Araújo e menos Lagarce, mais momentos em que o Vertigem possa, de fato, ratificar a boa fama que consigo traz.


Ficha técnica: Tradução: Sergio Siviero / Direção e adaptação: Antonio Araújo / Elenco: Luciana Schwinden, Roberto Áudio, Sérgio Siviero / Iluminação: Guilherme Bonfanti / Cenografia: André Cortez Trilha sonora: Laércio Resende / Direção de produção: Teatro da Vertigem e Henrique Mariano / Duração do espetáculo: 55 min
Gênero: leitura dramática / Classificação etária: livre
http://www.teatrodavertigem.com.br/


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Kabul: O corte na academia

Ao falar de dois aspectos apenas, proponho uma análise que, sem a pretensão de abranger o todo de Kabul, a mais nova produção do Grupo Amok Teatro, consiga dar conta do que seja essencial no destaque que esse espetáculo tem na larga programação do 6o Festival Palco Giratório. São eles: o modo como os atores dizem o texto e a transição das cenas/quadros.

O português é corretíssimo (quase sempre). As palavras são ditas com uma dicção perfeita, ultrapassando quaisquer limites que o sotaque poderia manifestar. Stephane Brodt, que, sendo francês, muito honra os brasileiros pela sua permanência aqui, trabalha seu jeito natural de falar de forma a acrescentar ao personagem afegão que interpreta. Ana Teixeira, a diretora, por seu turno, trabalha as vozes dos demais atores da peça, todos num nível altíssiomo de excelência, a também buscarem a tonalidade afegã, de forma que, importando menos a bagagem do ator, de um modo geral, os tons se aproximem. Todas as frases são ditas pausadamente, como se algo superior à situação fizesse os falantes controlarem-se. Por outro lado, a sensação é de subserviência às regras do dizer, pois não há quem se sinta bom o bastante para quebrar essa norma, nem quem tenha vontade de. O resultado é lentidão, amargura e peso.

Estamos falando em tragédia. Kabul, que trata da vida na cidade de Cabul, capital do Afeganistão, e que começa com a divulgação de algumas leis promulgadas em 1997 (trezes anos atrás apenas), do ponto de vista de suas interpretações, cheira à tragédia, das gregas. Os personagens encaminham suas direções por entre limites muito bem marcados, definidos, superiores a eles e suas vontades/idiossincrasias. Não há o que fazer a não ser aceitar e conviver com as novas determinações políticas. Daí a lentidão que é conseqüência do alto peso de cada vida em jogo no jogo cênico, isso expresso no jeito como cada personagem fala, mas também em como ele se move, como ele se relaciona, como se prepara. O cenário é horizontal: os atores permanecem bastante tempo sentados ou deitados. O nível é baixo como que evidenciando que há um plano superior e ordenador. Quando há um grito, ele dura por frases inteiras e não apenas é uma interjeição. O que de cenário ocupa pontos altos são cortinas que se estendem por além de um metro e não apenas por um único centímetro. A concepção de Teixeira, pela forma coesa que se expressa, faz do Amok, nesse espetáculo, como também em outros, um dos melhores grupos teatrais do país nesse tamanho continental que ele tem.

E, ainda no mesmo aspecto, indo além da encenação e chegando na recepção, o clima instaurado de dor contínua e peso se estende ao público. O espetáculo sufoca. Quem vê se sente preso nesse estado de coisas tolhedor de qualquer liberdade: não podemos nos mexer, não podemos olhar para outro lado, não podemos não ouvir e, principalmente, não nos é permitido não compreender o que está sendo dito. Tudo é claro o bastante para nos obrigar a experimentar. Nessa situação, vemos os personagens como resultado desse meio, sem moral, nem ética, sem culpa, nem intenções. A narrativa nos faz cogitar a hipótese do instinto.

Em Cabul, nenhum tipo de divertimento é permitido. Não se pode cantar ou dançar, ouvir ou produzir música, pintar, escrever, fotografar ou fazer teatro. Um jovem (Marcus Pinna), que casou-se um pouco antes de todas essas normas entrarem em vigor, sente-se amordaçado nessa situação desumana. Um dia, diante do horror do apedrejamento público de uma condenada, pega uma pedra e participa da punição. Seu ato é julgado pela moral, pela ética, por sua própria história e, principalmente, por sua esposa. Por que ele tomou parte disso e manchou suas mãos nesse assassinato cruel? O clima animalesco toma conta da cidade e só a partir disso é possível absolver o jovem, cujos hormônios encontraram no show negro um motivo para explodirem. O realismo naturalista se encontra com o psicológico, ou seja, tentando analisar teoricamente esse trabalho do Amok Teatro, sugiro a hipótese de compreensão do personagem tanto a partir da situação como do seu próprio universo psicológico.

Permanecendo na questão da encenação, adianto sobre a transição dos quadros. Cada troca de cenário é mais terrível que a anterior. O ritmo lento de cada quadro muda repentinamente quando ele termina. Os atores fazem barulho, correm, agem. É um tormento vê-los saírem da situação cênica embora sejam precisos e necessários. Então, reflito sobre o incômodo que se sente e encontro lugar na experiência de que falava parágrafos acima. Kabul faz reviver uma situação política verdadeira em Cabul. O tormento sentido pelo espectador absorto é necessário à peça, ao que se quer, à catarse épica, se é que Aristóteles e Brecht possam conviver. Quanto mais rápidos são os atores na contrarregragem, mais cortante se torna a cena conseqüente. E, me parece, ser esse corte o material que o grupo precisa para fazer acontecer sua proposta: transportar a assistência para aquele contexto e, de lá, fruir a cena.

Quando Jorge Arias diz que Kabul foi um dos melhores espetáculos dessa edição do Festival, ele não só está certo do ponto de vista artístico como também do teórico. Afinal nem só de Lehmann deve viver a academia.


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Texto e Direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt / Elenco: Stephane Brodt, Fabianna de Mello e Souza, Kely Brito e Marcus Pina / Figurino: Stephane Brodt / Cenário: Ana Teixeira / Iluminação: Renato Machado Música: Beto Lemos / Produção: Erick Ferraz / Duração: 1h20min / Classificação: 16 anos
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O dragão: Realidade

É Christian Metz quem diz, lá pelas tantas, da sua teoria da linguagem cinematográfica, que o teatro, de tão real, acaba sendo menos real que o cinema. Segundo ele, tendo a sua frente nada além de sombras, o público se sente mais livre para conviver com sua própria realidade do que no teatro, quando tem, bem próximo de si, seres humanos a representar.

“O dragão”, é constrangedoramente real. Como também é verossímil dizer que é teatro da melhor qualidade. Há quem diga que é pesado. Que é triste. Que é trágico. Que é frágil ou mesmo parcial, politicamente falando. Mas, seja o que acharmos do tema, não há como encontrar nessa produção maus usos de tudo aquilo que o teatro oferece.

As interpretações de Stephane Brodt e de Fabianna de Mello e Souza calam fundo na construção de suas personagens. O texto é dito de forma realista, exibindo uma pesquisa de sotaques e ritmos digna dos muitos prêmios que ambos já receberam em suas carreiras. Usam de grande técnica e disponibilizam para a assistência uma imagem de si que demora para sair de nossas mentes. Há pouco movimento em suas performances, aumentando com isso a importância do gesto e do olhar. Sem medo, a direção explora o talento e a experiência nos presenteando com tão profundas personagens bem contadas.

Todo o resto é e torna-se teatro pela importância que recebe das histórias narradas pelos personagens. São quatro monólogos que não necessitam de nada, mas ganham cores e profundidades que, nos intervalos entre um e outro, ocupam nossa fruição enquanto “engolimos” as emoções expostas. A trilha sonora, executada ao vivo, corresponde ao trabalho de sonoridades das intenções do texto. Tanto os instrumentos como as melodias ratificam a seriedade com que o Grupo Amok de Teatro
 encarou essa produção dirigida por Ana Teixeira, cujo currículo é invejável. O mesmo se diz dos tecidos com que se compõem os figurinos e as pontuações de luz afinadamente colocadas no espaço cênico.

Longe de discutir gosto e ideologia, podemos nos surpreender atentos ao que é feito em nossa frente por seres humanos reais como nós, profissionais de alta qualidade e artistas de valor reconhecido. As histórias que nos são contadas nesse espetáculo, a parte o que contam, chamam a atenção pela forma como são expostas. Se pelo quê agradeço, o como eu enalteço.

Falar de seres humanos é o tema mundial a que recorre todos os artistas da história. Falar de forma a ser ouvida com dedicação é mérito de bons falantes. Ouvir me faz honrado.

Ficha técnica
Direção: Ana Teixeira
Montagem do texto: Ana Teixiera e Stephane Brodt
Elenco: Fabianna de Mello e Souza, Stephane Brodt, Kely Brito e Thiago Guerrante
Música: Carlos Bernardo
Instrumentos em cena: Alaúde, Darbuka (percussão), Bodhran (tambor paquistanês), viola de gambá
Assistente de direção: Kely Brito
Iluminação: Renato Machado, em colaboração com o Amok Teatro
Figurino: Stephane Brodt
Cenário: Ana Teixeira
Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistella
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terça-feira, 24 de maio de 2011

Reação necessária

Vsevolod Meyerhold (1874-1940) reage ao teatro realista de Danchenko e de Stanislavsky explorando no teatro as influências do simbolismo, do cubismo, do impressionismo e, depois, do expressionismo. Com isso, o jovem expoente das artes russas estabelece uma nova relação com o público teatral: todos são criadores, não apenas o elenco de atores. Elimina o cenário, dá maior importância para a luz e, pelo que é mais conhecido, investe mais na forma do que no conteúdo, estetizando o teatro russo daquele início de século XX. A técnica da biomecânica, cujo repertório ainda hoje é estudado (e deve ser valorizado), consiste no exagero dos gestos, no aumento absoluto da tensão em cada movimento, na exploração do corpo do ator como uma peça a mais na máquina teatral. O corpo do ator não está a serviço do texto, mas o constrói, o expressa tanto quanto a voz do ator, podendo ser essa, suprimida da encenação sem que haja perda informacional. Evoluindo da Commedia Dell Arte e do Teatro Oriental, da pantomina e do grotesco, o ator, nesse contexto, é a materialização da força que expulsa a idealização e não representa a realidade, mas a reflete. 

O Grupo Teatro Torto, dirigido por Tatiana Cardoso, traz ao palco de Porto Alegre o, antes de tudo, lindo espetáculo “O dia desmanchado”, monólogo cênico interpretado por Marcelo Bulgarelli, aluno do mestre russo Gennardi Bogdanov, discípulo em segunda geração de Meyerhold. A peça consiste num dia de um homem normal num plano não convencional. O seu dia não tem um número de horas que se repete, mas um número que se desmancha, fazendo com que haja mais amanheceres do que anoiteceres, com que situações se repitam ou não terminem, permitindo que sonhos e realidades se misturem e nunca se definam. O tempo, assim como o espaço, é fluido. O que vemos no palco é como um reflexo de espelho veneziano, torto, distorcido, com configurações próprias, sem compromisso total com o objeto refletido. 

O dia desmanchado é uma alternativa ao que reflete. Usa algumas cores, algumas formas, estabelece uma certa reflexão, mas investe em suas próprias realidades. Bulgarelli está nada menos que excelente, nesse espetáculo que tem uma direção de arte tocante. As cores e as texturas dispersas no cenários e nos figurinos fazem lembrar um não-sei-o-quê de imaginário, de algo que não é desse mundo, mas conversa com ele, está nele, é imanente a ele. O espectador tem sua sensibilidade para o tom, para o movimento, para o ritmo fisgada: o espetáculo força quem o vê a dar algo de si, e esse algo não é racional. A trilha sonora de Jackson Zambelli e de Sérgio Olivé remetem a uma melancolia de um tempo não vivido, mas sonhado. E sonho e idealização não são a mesma coisa: em O dia desmanchado nem tudo são flores. 

O personagem é construído por Bulgarelli em todas as suas partes: cada músculo foi muito bem treinado e cada movimento é domado pelo seu (excelente) ator, que conhece a si próprio a ponto de não deixar um só milímetro ou grama escapar-lhe do projeto cênico. O personagem corre, dorme, pula e caminha dando ao público ver cada mínimo gesto desses caminhos. O conteúdo se esvanece, interessa a quem vê a expressão que, de tão bem articulada, provoca uma quebra na realidade, essa, então, deixada do lado de fora do teatro, sem que haja a aristotélica catarse. A fruição é plena no sentido de que a peça hipnotiza a plateia. 

A cena de aviões jogados ao anoitecer emociona. Outros momentos fazem rir. A reação espontânea, vinda da proposta imagética também construída pela assistência, é tudo o que se quer. Tatiana Cardoso, também diretora de As bufa, mais uma vez, é magnífica ao presentear a cidade com tão belo trabalho. É preciso reagir ao mundo que encontramos lá fora, depois de aplaudir fortemente a produção, e sair para o dia normal que conhecemos e que também se desmancha sem que percebemos (sempre).

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Ficha técnica:

Direção e Dramaturgia de ações: Tatiana Cardoso
Atuação: Marcelo Bulgarelli
Assist. Direção e contrarregragem: Aline Marques
Trilha sonora original: Jackson Zambelli e Sérgio Olivé
Bandoneón: Mano Monteiro
Figurino: Teatro Torto
Cenário e Objetos: Maíra Coelho
Iluminação: João Marcos Dadico
Formação musical: Simone Rasslan
Arte visual: Ernani Chaves e Viviane Martins
Rádio: Heitor Schmidt
Produção Executiva: Simone De Dordi

Produção: Marcelo Bulgarelli e Simone De Dordi
Realização: Teatro Torto
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sexta-feira, 20 de maio de 2011

O detalhe que constrói o sucesso

Se o teatro pudesse ser comparado a uma casa, o lugar onde Guilherme Leme e Jô Bilac moram seriam aquelas casas cheias de bibelôs e toalhas de crochet, pratos pendurados na parede, panos de prato bordados, bolo quente sobre a mesa e flores recém colhidas em todos os cantos. Nada está fora do lugar, nada é sujo, nada é mal cuidado. Quando uma análise crítica de um espetáculo afirma que a peça contribui para o teatro na mesma medida em que por causa dele é feita, é sobre isso que está-se falando. Um bom artista é aquele que cuida da sua arte, sem egoísmo para cortar aquilo que lhe faz bem, sem auto-suficiência para deixar de prestar a atenção no menor detalhe. Leme e Bilac oferecem com “O matador de santas” uma peça de arte, de teatro, preciosa.
Como já apontei na crítica de “Rebu”, dirigido por Vinícius Arneiro, outro espetáculo participante do 6º Festival Palco Giratório, evento promovido pelo Sesc-RS, há duas dramaturgias em "O matador de santas" e essa co-existência é a mais absoluta expressão do infundado termo “dramaturgista”, em moda nas mais diversas bocas. Encarregado pelo texto narrativo, pelas palavras, pelo contorno dramático da obra, Bilac talha as palavras magistralmente. Nada sobra nos discursos individuais de cada personagem. “Um sanduíche em dois palitos” e outros termos do gênero são exemplos de como cada sílaba foi pensada diacrônica e sincronicamente, isto é, a partir de sua relação com quem diz e em que momento da narrativa se diz, e a partir também da relação com a história que se conta para um determinado público. Som por som, a reflexão sobre o detalhe é a responsável pelo sucesso do texto, embora não a única.
Jô Bilac não é Nelson Rodrigues e nem mesmo uma releitura do mais importante dramaturgo brasileiro. Mas  se torna muito  importante, porque abandona, enquanto dramaturgo – escritor que, com os pés na literatura, olha para o teatro – qualquer intenção em experimentar, em inovar, em quebrar barreiras, olhando de forma desafiadora para o velho, para o confirmado, para o pronto e estabelecido. Bilac se aproveita de todas as estruturas e constrói algo que há cento e cinqüenta anos (no Brasil) agrada, vende, diverte e é considerada boa. Faz Melodrama: personagens bem definidos, estrutura bem marcada, segurança garantida, fruição livre, catarse acessível, entretenimento puro e de bom gosto. O espectador entra na história, consome as aventuras dos personagens, se rói para saber como vai terminar, aspira pelo ápice e não tem dúvidas de que assistiu a um grande espetáculo. (Nelson Rodrigues, e dizer isso é lugar comum, não faz melodrama, mas estabelece um texto cujas situações são melodramáticas, essas construídas por personagens naturalistas. Essa encruzilhada é que faz dele imbatível até hoje na dramaturgia universal.)
Guilherme Leme estabelece a dramaturgia da encenação, expressão que não quer dizer outra coisa se não “ Guilherme Leme faz teatro”. Quando Ângela Vieira, por exemplo, ao interpretar a protagonista Jorgina, não descansa, ao mesmo tempo, os dois pés no chão, o mérito da atriz é filtrado pelo mérito do diretor que assim permitiu que atriz fizesse. Quando o cenário em púrpura combina com o chão e com o vestido da protagonista, dando um ar de união entre personagens e lugares onde eles moram, também é mérito do diretor que apresenta a possibilidade de pensarmos num ecossistema naturalista, mais próximo de Nelson Rodrigues que Jô Bilac ousou chegar. Quando um lado do palco é côncavo e o outro é convexo, ao público é dado o direito de pensar de que se trata de uma prisão que poderá se fechar e esmagar os personagens em qualquer momento. Quando as mãos de Ângela Vieira e seus ombros se armam, pensamos na personagem como uma ave, uma calopsita talvez. Tudo isso é a concretização do texto em teatro, dramaturgização, ou meramente uma excelente direção cênica.

Todos os atores oferecem muitos méritos à produção. No entanto, seu contorno não é equânime. Ângela Vieira e Rafael Sieg, que Porto Alegre conhece pela sua nobre interpretação de Jasão em Medeia (com Sandra Dani, direção do Luciano Alabarse) sustentam construções bastante codificadas. Izabella Bicallo, que construiu uma belíssima Joana em “Gota d’água” (direção de João Fonseca), e Tonico Pereira, que dispensa apresentações, tamanha é a sua importância ao teatro, ao cinema e à televisão nacional, no entanto, não têm o mesmo tipo de condução. Seus personagens agem com mais naturalidade, desequilibrando a linguagem estabelecida pela outra dupla. A soma resulta em mais uma marca da aproximação de Leme a Nelson Rodrigues, sem que seja ela represente um aspecto negativo.
“O matador de santas” se trata de uma família às voltas com o casamento de sua única filha com um médico. Enquanto isso, um serial killer atormenta a vizinhança, assassinando moças com nomes de santas. A história começa quando Jorgina, a mãe da noiva, vai ao delegado reclamar que seu carro foi riscado por um vizinho com cara de suspeito. Ela, então, começa suspeitar que seu vizinho é o famoso criminoso, vendo nisso a possibilidade de ganhar fama e reconhecimento. Vale a pena assistir pela história e por quem conta ela. Mas, também, como foi exposto, pela forma inteligente e valorosa como narrativa é contada.


Ficha técnica: Elenco: Angela Vieira, Izabella Bicalho, Rafael Sieg e participação
especial de Tonico Pereira / Texto: Jô Bilac / Direção: Guilherme Leme / Iluminação:
Maneco Quinderé / Figurino e cenografia: Leopoldo Pacheco / Trilha sonora: Vulgue
Tostoi (Marcello H. e Jr. Tostoi) / Produção: Montenegro e Raman e Angela Vieira /
Duração do espetáculo: 80 min / Gênero: teatro adulto / Classificação etária: 14 anos



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O espetáculo não começou

Eis a obscura sinopse do espetáculo “Cabanagem”, parte da programação do 6º Festival Palco Giratório, evento promovido pelo Sesc/RS.

“Cabanagem foi uma revolta popular em que negros, índios e mestiços insurgiram contra a elite política regencial. Diversas batalhas fizeram com que o movimento ficasse marcado por violência. A pesquisa para o espetáculo partiu da literatura de Márcio Souza e Marilene Corrêa, a partiu da qual o coreógrafo iniciou o seu trabalho, mergulhando no universo cabano. A obra não é narrativa. O espetáculo apropria-se da essência da Cabanagem e utiliza a linguagem de Mário Nascimento para traduzir o espírito de resistência, de luta, de revolta, de preservação das culturas de
determinado local.”

            A Revolta dos Cabanos está para os Estados do Amazonas, Pará, Acre e Roraima (que, no século XIX, era uma só província) o que a Revolução Farroupilha está para o Rio Grando do Sul, acontecendo, inclusive, no mesmo período. Algumas diferenças: eles não se separaram do Império, a guerra durou cinco anos e não dez, e teve maior participação de populares do que a nossa daqui. O nome “Cabanagem” surgiu pelo mesmo motivo que o “dos Farrapos”: em tom pejorativo, assim eram chamados aqueles que moravam nas cabanas, pobres casas de telhado de palha. O espetáculo homônimo, no entanto, nem de longe, apresenta ao público qualquer referência à revolução mais importante da região norte do país, à guisa do que consta na sinopse acima. Nem referencia qualquer outra coisa. Em suma, a obra concebida e coreografada por Mário Nascimento é indicial apenas: exibe uma técnica, uma habilidade, a possibilidade de algo que não se concretiza. É impossível dizer que algo nada significa, mas, sobre o espetáculo do Corpo de Dança do Amazonas, a afirmação possível é a de que seu significado é tão desinteressante quanto chato.
           
            Quase uma hora de coreografias que não são nem narrativas e codificadas como a dança tradicional (folclória ou ballet clássico), nem fluídas e livres como a dança contemporânea, mais parecem um aquecimento, o que nos deixa a espera de algo que não se estabelece. Cada dançarino, sozinho ou em grupo, repete do início ao fim os mesmos movimentos em lugares diferentes tanto do palco como da duração do espetáculo. Não há quebras, sendo extremamente previsível num constante equilibrar-se e desequilibrar-se, intenção e foco múltiplo, força e embasamento. A trilha sonora escolhida confere ambiente, mas não faz referência a nada que já não sabemos lendo a sinopse. O figurino é neutro. A iluminação é redundante. Resultado: o parágrafo escrito pela produção do espetáculo e divulgado pela produção do evento é mais rico do que obra cênica, essa paupérrima.

            Um único momento de exceção: quanto todos entram vestindo casacos, somos convidados a nos revirar nas cadeiras à espera de algo que possa fazer sentido. Alarme falso: novas exibições de movimentos desconexos num todo nada arregimentado.
           
            Dançarinos com boa forma física e instrumentos corporais dispostos a estabelecer boas relações, quando não compõem um espetáculo, são como um set de filmagem. Luz está pronta, som preparado, claquete a postos, atores nos seus lugares. Nada disso é cinema enquanto não estiver editado e na tela.

Ficha técnica:
Direção artística: Corpo de Dança do Amazonas / Concepção e coreografia: Mário Nascimento / Produção musical: DJ Marcos Tubarão / Iluminação: Mário Nascimento / Iluminação (execução): Monique Andrade / Figurino: Mário Nascimento e Corpo de Dança
do Amazonas / Produção: Carla Lee / Elenco: Adan Souza, Adriana Góes, André Duarte, Ângela Duarte, Baldoino Leite, Fabian Aarão, Flávio Soares, Gentil Neto, Getúlio Lima, Helen Rojas, Liene Neves, Marilucy Lima, Meire Jane Melo, Rosely Reis, Sumaia Farias, Valdo Malaq / Classificação etária: livre / Gênero: dança / Duração: 50 minutos


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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Deixará saudades das saudades

“Trilha sonoras de amor perdidas” é o segundo espetáculo da trilogia pop da Companhia Sutil, grupo de teatro de Curitiba/PR, fundado em 1993, sendo que o primeiro foi o impossível de esquecer “A vida é cheia de som e fúria”, de 2000. O trio de sucesso Felipe Hirsh, Guilherme Weber e Beto Bruel, juntos em mais essa produção, são chaves de entrada para uma análise sobre essa obra que engrandece a programação do 6º Palco Giratório, evento produzido pelo SESC/Porto Alegre-RS.
            Resultado de um processo de pesquisa sobre as histórias de Thurston Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Sheffield, Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, entre outras, a verborrágica produção é quase nada imagética e bastante sonora, como já aponta no título. São três horas de conversa sobre música pop, sobretudo acerca de títulos famosos nos anos 80 e 90, cujo diálogo com o espectador se estabelece de forma inusitada e brilhante. Felipe Hirsch, o diretor, é um dos responsáveis pelo prazer dessa conversa. Felizmente, não é único.
            Um apartamento de um homem solteiro (Guilherme Weber) por volta dos quarenta anos, que veste camiseta e jeans é lugar onde ação se dá. Esse homem, alto, bonito e sensível, revira caixas de papelão, tirando delas livros, discos, CDs e fitas cassetes. Seu instante-que-dura-para-sempre se localiza há quase duas décadas, quando ele conheceu a única mulher que amou e com quem se casou. Finda a apresentação dos personagens, do lugar, do tempo e da situação básica, conhecemos Soninha (Natália Lage) e seu esforço sutil de tornar-se inesquecível. A dramaturgia acontece de forma a manter sempre duas pessoas no discurso: Guilherme Weber interpreta um personagem que viaja no próprio passado e se encontra quase vinte anos antes. Em tese, está a reflexão sobre o quão de nós de hoje havia no nós de ontem e vice-versa. O resultado, que permanece imanente durante todo o período da assistência, fica forte e ávido por nos fazer chorar, sorrir, ter vontade de levantar, beber e fumar, enfim, fazer algo, agir. Na grade de programação teatral porto-alegrense, e por que não brasileira?, é comum ver peças “mofadas”, as quais assistimos para contemplar um modelo, um gênero, uma forma que outrora foi interessante, mas que pouco diz aos dias atuais. Nessa produção da Companhia Sutil, o processo é inverso: paira o sentimento de que nós é que somos mofados diante das coisas que outrora planejamos ser.
            Guilherme Weber, e também Natália Lage, criam rápida empatia com o público. O figurino é causal, a movimentação é causal, o tom é casual. Percebe-se que há um arranjo no preenchimento do palco, mas o discurso corporal atua no sentido de esconder o ensaio e propor a ilusão de que tudo acontece de forma espontânea, no que obtém sucesso pleno, apesar da apresentação a que assisti ser a estreia oficial da peça. As conseqüências são vistas no estabelecimento da linguagem de “Trilhas sonoras de amor perdidas”: há coerência e coesão em tudo aquilo que une a história e o seu jeito particular de contá-la. A assistência ouve, sem pausa, nomes de canções, bandas, compositores, letras, bandas e títulos que talvez nunca tenha ouvido antes, mas aceita o acordo de que, sim, tudo aquilo fez parte do passado que compartilhamos com o protagonista, não importando a idade que tenhamos. O mesmo acontece com os lugares, os empregos, as tensões pelas quais os personagens passam, que talvez não sejam as mesmas pelas quais passamos. O teatro, que então promove o diálogo de igual para igual, se manifesta na forma como os atores fazem desaparecer o texto e todas as demais possíveis barreiras, produzindo um pouco do pó mágico que os bons artistas (e as boas obras) conseguem.
            O texto pode ser considerado difícil, porque é descritivo demais e narrativo de menos. Escondê-lo, felizmente, é mérito dos atores, grupo em que se inclui Maureen Miranda e Carolina Foquemont, em especiais e pequenas participações. Ambas, ao tomar parte da cena, oxigenam o ambiente e permitem ao espectador fruir a obra com um pouco menos de absorção e um pouco mais de criatividade. Num constante direcionamento vertical, Hirsch, Weber e Lage levam o público para dentro de seus personagens, mas Miranda e Foquemont ratificam os acordos com a plateia na medida em que tornam a história da ficção mais parecida com as histórias da não-ficção – as nossas, talvez. Curitiba pode, assim, ser Porto Alegre, o Ocidente pode ser o bar da João Telles, os ipês podem ser os da Av. Venâncio Aires, a loja de discos alternativos pode ficar abaixo do Viaduto Otávio Rocha. Essas possibilidades, que foram belamente apresentadas, são o remédio contra a estagnação que acontece no final do primeiro ato, quando o texto parece mais verborrágico do que bom. Elas dão ritmo aos momentos em que já entendemos a proposta, já relacionamos os signos e estamos prontos para avançar, mas, apesar disso, pouco andamos. Emocional, o segundo ato acontece apoiado nas construções anteriormente feitas.
Hisch conseguira, junto de seus atores e de sua equipe, estabelecer uma sintaxe que deixou o espetáculo fluido. Entre todos os elementos arregimentados nessa estrutura cheia de eficientes acordos, a iluminação é o que mais se destaca. Bruel, que assina também a iluminação do não menos excelente “Memórias da água”, oferece ao espetáculo um personagem a mais. Depois de já ter participado de forma discreta, mas potente de várias construções de cena, num determinado momento, mini brutes são acesos vagarosamente sobre a plateia. A situação ficcional do palco invade a audiência, cresce sobre nós, nos obriga a fechar os olhos e olhar para dentro, onde a catarse está agindo ferozmente. Blackouts, por sua vez, ao mostrar a ausência da luz, escondem o que deve ser visto pela nossa imaginação. As diversas zonas do palco e da história são estabelecidas como parte da contagem e não apenas como instrumentos dela, o que é de notório valor.
Em todos os aspectos, criteriosamente considerados na viabilização da peça, Hirsch e todos os responsáveis maiores por ela oferecem momentos de absoluto contentamento estético.  A produção, que marca por nos fazer sentir saudades de nós mesmos, deixará saudades das saudades que nos faz sentir.

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Ficha técnica:
Criação: Sutil Companhia
Produção e realização: Sutil Companhia de Teatro
Direção geral: Felipe Hirsch
Elenco: Guilherme Weber, Natália Lage, Maureen Miranda e Carolina Foquemont
Co-direção: Murilo Hauser
Cenografia: Daniela Thomas e Valdy Lopes
Iluminação: Beto Bruel
Figurinos: Veronica Julian

Trilha sonora pesquisada: Felipe Hirsch
Assistência e operação de iluminação e vídeo: Sarah Salgado
Tradução do material original de pesquisa: Ursula e Erica Migon
Assessoria de imprensa: Vanessa Cardoso – Factoria
Design gráfico: Maria Andrade
Assistente de produção: Bruno Girello

Produção executiva: Marcelo Contin
Coprodução: Leandro Knopfholz – Parnaxx
Duração do espetáculo: 180 min

Gênero: drama/comédia
Classificação etária: 14 anos

Por Rodrigo Monteiro