quarta-feira, 11 de maio de 2011

Por Rodrigo Monteiro - ISAIAS IN TESE

ISAIAS IN TESE

Nos dias 12 e 13 de agosto último, o Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, o Instituto Goethe e a Coordenação de Artes Cênicas da SMC/Porto Alegre promoveram o bem-vindo seminário “Teatro contemporâneo: para além do drama”, trazendo o Prof. Hans-Thies Lehmann e a Profª Eleni Varopoulou. Foram dois dias de intensa programação em que a classe teatral porto-alegrense e seu respeitável público pode discutir o tal “Teatro pós-dramático”, que também é o nome do livro do professor Lehmann. Uma das questões que ficou bastante clara é a de que não devemos confundir a denominação do termo com um gênero teatral. Teatro pós-dramático não se apõe à farsa, à comédia de costumes, ao musical americano, ao melodrama francês ou latino ou rodrigueano, ao absurdo, à tragédia clássica ou grega ou shakespeareana, ao realismo psicológico ou naturalista ou fantástico, ao teatro para crianças, de rua, de bonecos, ao espetáculo circense, à performance, ao teatro que se crê, ao happening, ao teatro de revista, ao burlesco, às extravaganzas, ao stand up comedy, à tragicomédia, à alegoria, ao teatro ritualístico... Não é um tipo de teatro, mas se opõe a qualquer produção que sustente uma única categoria. Porque convergir é o objetivo da narrativa dramática que se organiza para resolver um conflito num processo crescente. O olhar pós-dramático identifica a divergência, a multiplicidade de conflitos e aceita que há mais sentidos e possibilidades do que o olho pode captar. Entende que um espetáculo teatral é um espetáculo independente da forma como se organiza, mas vê em sua apresentação mais que uma apresentação e outorga ao espectador a assustadora e estimulante responsabilidade por suas próprias relações de sentido, essas não mais presas ao objeto, mas construído a partir das trocas com outros objetos.

No mesmo mês de agosto, a capital gaúcha apresentou ao seu público o espetáculo “Isaías in Tese” no Espaço Ox do Bar Ocidente. Aqui, vale a tentativa de olhar criticamente a peça sob a ótica do conceito “teatro pós-dramático”, como bem se poderia olhar através do conceito de “dramático”, a que não se propõe no momento.

Um mendigo, quase como tantos, está nos arredores do Ox. Aos apressados, chama a atenção o seu senso estético: há uma flor vermelha na cabeça dele. Entrada na mão, por entre as mesas e cervejas, o espectador é convidado a sentar e a assistir à peça que começa com a mudança de luz e a introdução de uma música. O mendigo da rua entra. Era o ator Francisco de Los Santos, conhecido já nos palcos gaúchos também como figurinista. Há uma cama de jornais, um sapato velho. O mendigo joga com o público, com a cama, com a luz. Quando joga com o sapato velho, podemos lembrar de Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”. Um “pisante” ganha novos sentidos: dignidade, por exemplo. A cama de jornal se torna apenas jornal que o mendigo agora lê ao se arrumar à guisa de suas mãos sujas, de seus dentes podres e de seu cabelo desgrenhado. Vagas para emprego, anúncios de carreira profissional. Ele atende a uma oferta: o mendigo se torna palestrante, doutor com Currículo Lattes em Imigração.

Auxiliado por um datashow, que não passa de um papelógrafo pintado, a palestra inicia. E o texto dramatúrgico baila por vários gêneros. Uma descrição, uma dissertação, uma narração, uma receita, uma injunção... Palavras são incluídas de forma irregular: ora pelo sentido, ora pela sonoridade... O ator interrompe o discurso e fala com os ouvintes quando vê pessoas chegarem, quando ouve interrupções, quando precisa respirar.

Imigração humana, dos objetos, das aves, dos peixes, dos humanos novamente. Imigração da família real portuguesa para o Brasil Colônia. D. João VI traz sua esposa Carlota Joaquina que era uma “galinha”. Um nordestino corre atrás de uma galinha (sem aspas) para festejar sua despedida para o sul do país. No sertão, ele deixará também sua “cabritinha” (com aspas). Vem para o sul, para o Rio Coração Grande do Sul, onde há frio, onde as pessoas são frias, onde trabalhará como vendedor em Cachoeirinha. Ele reza para o Padre Cícero e reconhece o Santo do Laço, ou o Laçador, talvez, o padroeiro do nosso estado. Ele pede forças e tem sucesso.

O ator une na encenação os técnicos presentes e o público. Cita amigos conhecidos, traz referências além da narrativa. Explora um enchimento que lhe dá uma genitália visível sob as calças. É um bufão, é um comediante de stand up, é um ator de melodrama, é um personagem. Um ser que faz surgir outros, um interpretante que instaura uma nova cadeia de sentidos, uma piada que vira momento de reflexão.

“Isaías in Tese”, por vezes, se arrasta e o ritmo cai. Mas, mesmo nesses momentos, Francisco de Los Santos prende a atenção. Dono de grande carisma, o ator se entrega de forma emocionante ao seu público. Completamente sozinho em cena, sua coragem de enfrentar-se e expor-se é digna dos aplausos que se estendem por minutos pela forma humilde, sutil, delicada, afetuosa com que se dirige à audiência. O tempo da narrativa corre solto por entre as divergências formais de sua apresentação. A peça, que tem um figurino digno de aplausos em separado, além de outras qualidades técnicas, termina com o personagem inicial voltando a ser o mendido, o que grita ao olhar pós-dramático. Mas esse olhar, que também pode se fechar, que só é pós porque um dia foi aristotélico.

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FICHA TÉCNICA

Direção: Roberto Oliveira
Preparação de Bufão: Daniela Carmona
Assistência de Direção: Isandria Fermiano
Dramaturgia: Francisco de los Santos e Roberto Oliveira
Texto: Francisco de los Santos
Elenco: Francisco de los Santos
Trilha sonora: Antonio Macalão de los Santos
Criação Luz: Carol Zimmer
Operador Luz: Rafael Machado
Cenário: Rudinei Morales
Figurinos: Coca Serpa
 
Credito da foto: Kiran

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